Carta para alguém que nunca soube ler
Quando penso em você, a minha memória é da gente na praia. Sua mão segurava a minha enquanto eu me banhava bem naquele pedacinho de mar que não chegava ao calcanhar. Às vezes, você sumia, e quando eu conseguia avistar uma careca brilhante quase em alto mar, já sabia quem estava lá. Você voltava reclamando da água gelada que deu câimbra, abraçava todo mundo com o corpo molhado e até trazia alguns mariscos que pegou no meio desta aventura. Ah, essa careca! Já te conheci com ela. Você andava com aquele pentezinho redondo, bem “de velho”, e vivia penteando. Pouco cabelo, mas pouco cabelo sempre arrumado. Em casa, durante o dia, a gente não podia fazer barulho, porque você trabalhava à noite e era seu momento para descansar. Na bolsa do trabalho, carregava um banquinho portátil para o trem cheio e um clássico espelho de borda laranja que tirava da bolsa, virava para alguém e perguntava “qual é o bicho que vai dar hoje?”. Depois esse trabalho mudou. Você voltou a fazer e vender salgadinhos… OS MELHORES SALGADINHOS DO MUNDO! E enquanto eles estavam sendo feitos, não podíamos entrar na cozinha de jeito nenhum, para não cair cabelo! E como você brigava e brigava por isso. Sempre foi meio nojento, né? Não bebia água na casa dos outros porque tinha nojo dos copos; evitava comer na rua porque tinha nojo das unhas… Você comprava as coisas mais inúteis do mundo. Lembro da vez que voltamos de São Paulo com um pilão gigante que você nunca usou. Eu usava pra brincar, mas tinha que ser escondido. Às vezes eu acho que minha fobia de sapos foi herdada de você, porque lembro que odiava até as pelúcias. E eu amava te dar susto com elas. E falando em susto, tá aí algo que me lembra MUITO você. Vivia me dando susto, mas não só comigo. Era com todo mundo. E algumas vezes errava a dose, como quando fingiu que minha irmã tinha sido roubada na cachoeira e fez minha mãe pirar. Você sempre foi conversador, mas nem todos os netos te davam bola, né? Só eu. Você sempre foi curioso, mas ninguém tinha muita paciência para te ensinar. Só eu. Uma vez, ouvi você chamando a vovó pra dançar na sala. Eu estava na varanda. Ela não quis e respondeu “as crianças estão aí!”. Você foi a primeira pessoa a me dizer que me amaria independente de qualquer escolha que eu tomasse na minha vida. Foi quem ficou do meu lado quando papai me deu tapa na cara, que ficou do meu lado quando papai fazia questão de me humilhar. Você foi meu primeiro “aluno de informática”. Meu exemplo de motivação e que me ensinou a ter paciência para ensinar. Você foi meu primeiro patrão, aos sábado, quando eu tinha 11 ou 12 anos. Você muitas vezes foi rude, teve falas problemáticas; ou brigou comigo por eu me interessar em conversa de adulto, por sentar de perna aberta, por corrigir a fala dos outros, e por puxar o mouse ou celular da sua mão, em vez de ensinar a fazer. Ah, e se tem uma coisa em que você era bom – além da cozinha, das piadas, e do nado – era na matemática! Chegava em um lugar e conseguia calcular a metragem em alguns minutos, só no olhar. É… essa carta é para alguém que nunca soube ler e agora nem pode mais aprender. Alguém que não soube ler textos, mas sabia ler pessoas, sentimentos e corações. Sabia calcular, não só a metragem quadrada, mas a soma de todos os amores à sua volta. Vovô, é muito estranho pensar que você não está mais aqui. Mas vá em paz, sabendo do meu profundo amor e da minha enorme admiração por ti. Infelizmente, acho que nunca tive a coragem de verbalizar que sempre amei muito você.
De sua neta “universitária que mora longe”, Aline Mota
Rio de Janeiro, 18 de novembro de 2022.