Amarelo Gemada agora é Nada, não! #01

𔑺 it's never too late

Olá! Acho que não nos vemos por volta de uns três anos, não é mesmo?

Nesse meio tempo não posso dizer que escrevi muito. A verdade é que eu escrevi pouquíssimo e parte foi por conta de uma rotina de estudos e trabalho intenso, mas parte foi por me encontrar numa fase em que desacreditei da qualidade da minha produção, num todo. É fato que eu sempre tive grandes questões em ver valor no meu trabalho mas, neste meio tempo, enquanto eu continuava lutando por isso, eu estava tentando também botar muitas outras coisas no lugar.

Volto agora — não necessariamente com as coisas todas no lugar —, pensando se o nome antigo desta newsletter ainda faz sentido. É um nome do qual eu me apeguei horrores, é verdade. Amarelo Gemada. Acho ele marcante, divertido e único. Pode soar bobo, mas eu tenho orgulho de tê-lo criado. Se você me perguntar, vou dizer que não lembro exatamente o motivo da minha escolha por ele. Tenho quase certeza (ênfase no “quase”) que surgiu por conta de uma brincadeira com a música Amarelo Manga, de Otto, que eu escutei incessantemente num passado recente. À época, acho que funcionou. Hoje eu já não tenho tanta certeza disso.

O que eu não sei é se este nome ainda diz sobre quem eu sou ou sobre o que tenho pensado atualmente. Ao contrário da minha percepção sobre a música de Otto (que canta sobre um corpo que não fala e que não sente), Amarelo Gemada sempre teve um quê de engraçadinho. E era fato que, por mais que algumas edições tenham sido sobre assuntos mais sérios, minha tentativa sempre foi pincelar um risinho aqui ou ali.

No entanto, não sei se me sinto mais assim tão divertida. Ao menos não da mesma maneira.

O problema, na verdade, é que minha tentativa de ser divertida sempre esteve ligada a uma expectativa do Outro (este mesmo que sempre ronda esta pessoa e portanto, esta newsletter).

Para o Outro era isso mesmo que eu queria ser: a legalzona, a amiga pra todo momento, a querida e “boa moça” — como minha terapeuta tanto gosta de nomear este fenômeno na minha personalidade. Mas, se você pedisse para que eu me descrevesse, muito provavelmente eu escolheria palavras como ácida, impaciente, sarcástica, metódica e... chata.

Jesus-maria-josé, eu sou muito chata.

Pode ser surpresa para alguns que eu me veja assim. Para outros, nem tanto. Mas, dificilmente, a não ser que um dia você venha a ser parte da minha família, amiga muito íntima ou que moremos na mesma casa, você vai perceber essa minha chatice. Eu não deixo transparecer muito e, por que não dizer, que eu puxo o freio mesmo. Algumas pessoas com quem já trabalhei devem ter tido algum vislumbre da minha chatice quando, por exemplo, eu tenha defendido insistentemente uma ideia da qual acreditava muito, ou quando argumentei de mil maneiras diferentes sobre um ponto de vista, ou quando tive dificuldade de deixar algum colega tomar a frente de tarefas que eu acreditava que faria de maneira melhor ou mais efetiva.

Uns chamariam de persistência. Eu chamo de chatice mesmo. Até por que, dentro de casa e dependendo da época, eu sou quase insuportável. E talvez seja exatamente por não deixar minha chatice extravasar para o além família que isso acontece. Não é apenas a vontade de ter meu trabalho valorizado, mas a maneira como eu faço isso.

Porém, ser chata não me impede também de ser divertida, aos meus termos. Ambas as características podem e coexistem na minha personalidade. Meu humor é ácido e sarcástico e revela toda essa minha impaciência. Não é pra todo mundo e constantemente eu preciso afirmar para os meus pares que “é apenas uma brincadeira”. Não é um tipo de humor do qual me orgulho. E isso também não impede de, eventualmente, eu magoar alguém. Mas é meu humor. Não é especial, não é genial. Mas é meu e é de uma pessoa humana única.

Um das coisas que eu tenho tentado colocar no lugar e que eu vejo como a mais promissora é a minha própria humanização. É a aceitação de que eu sou uma pessoa falha, que não tem a obrigação de agradar. É a auto percepção de que o que eu tenho para falar é importante e que deveria ser posto no mundo, mesmo que a única ouvinte seja eu mesma. Mesmo que o que eu tenha para falar revele todos os meus maiores defeitos.

Não é fácil. Eu cresci acreditando que eu deveria ser perfeita. Que eu deveria ser agradável. Que eu deveria nunca desejar o mal ao outro. Que eu deveria falar baixo e o menos possível. É impressionante relembrar uma das minhas primeiras memórias da infância onde uma professora disse à minha mãe em uma reunião, que eu era “uma ótima aluna, mas conversava demais na aula”. Então, eu cresci acreditando que além de ótima aluna eu deveria também me calar.

Sendo bem franca, eu provavelmente devia falar além da conta mesmo. Lembro-me também de estar sempre virada para a carteira atrás de mim enquanto contava alguma história para colegas. Eu lembro da minha infância ser uma infância falante. Eu falava com pessoas imaginárias. Demorava dias para contar ao meu irmão o enredo de algum programa que eu tinha assistido, por conta de tantos detalhes que eu adicionava à narrativa. Lembro de contar sonhos ao meu pai enquanto tomávamos café da manhã. Eu não parava de falar.

Então, é claro que não foi culpa apenas desta professora. Mas, o calar-se, ao longo dos anos, me afetou de maneira profunda. A dificuldade de fala é uma coisa que me persegue até hoje. Que afeta todas as áreas da minha vida. Se disfarça de timidez, de introversão, ou se junta à elas. Se materializa no bolo que fecha a minha garganta toda vez que penso em reclamar sobre algo que me incomoda. Revela os contatos amigos que perdi, os trabalhos que me sujeitei a fazer por valores baixíssimos, o sentimento de solidão que não passa nem com todo amor que tenho ao meu redor. A dificuldade que, contra toda a expectativa que minha maturidade traz, só aumenta.

Audre Lorde, que foi uma mulher negra incrível, disse em um de seus textos que a dificuldade de fala é uma característica facilmente encontrada em mulheres negras. E, obviamente, é consequência de violência racista ao longo da vida, desde a infância. Minha terapeuta, que também é uma mulher negra incrível, provavelmente não aguenta mais repetir em nossas sessões que eu preciso falar. E, falar, implica em deixar ser vista, em ser desagradável, com errar e errar e errar e lidar com isso.

What are the words you do not yet have? What do you need to say? What are the tyrannies you swallow day by day and attempt to make your own, until you will sicken and die of them, still in silence? Audre Lorde

Depois de refletir sobre tudo isso, acho que essa newsletter merecia um novo nome. Um nome que comunicasse a tentativa da fala, seja ela com o humor que vier.

Assim sendo, esta é a primeira edição da Nada, não! Uma frase que vivo dizendo quando desisto de dizer (risos). O que eu nunca tinha percebido, até então, é que estas duas palavras sozinhas com uma vírgula no meio, diziam o contrário do que eu sempre quis comunicar.

A verdade é que eu tenho muito a dizer e esta é mais uma tentativa de continuar dizendo. Além de apenas dizer, é uma tentativa de ver valor na minha fala. Um corpo que tem todo o direito e dever, consigo mesmo, de falar (e ser uma pessoa chata).

𔒰 secos e molhados

Esta nova versão da minha newsletter provavelmente continuará aparecendo na sua caixa de entrada de quinze em quinze dias, a partir de agora. Vou seguir falando sobre a vida e minhas percepções e aprendizados neste mundo.

Estou separando cada edição por quatro seções simples:

Tenho planos de fazer um spin-off dedicado a falar sobre design, que é minha profissão. Quando (e se) acontecer, volto aqui para avisar.

𔒥 gratuito, livre ou aberto

𔑳 F12

A fonte utilizada para o título da newsletter é a Bagnard Regular, desenhada por Damien Poulain. Os símbolos unicode utilizados no início de cada seção são os do grupo Anatolian Hieroglyphs, respectivamente: U+1447A, U+144A5, U+144B0, U+14473.

Newsletter originalmente publicada e enviada por e-mail em 24 de Junho de 2020. Para assinar, é só clicar neste link: Quero me inscrever!