O dia que anoiteci

É corrido, mesmo em casa as vezes cê nem para pra reparar. Levanta, toma café, senta, lê, estuda, as vezes finge. Desce pro almoço, faz a digestão as vezes assistindo algo, as vezes olhando a paisagem. Sobe pro quarto, enrola, lê, estuda, estágio, as vezes finge. Noite, janta, ler, dormir. Rotina de quarentena: incluir conversar com amigos de casa, trocar mensagens, produzir pesquisa.

A rotina mecânica não é culpa da pandemia e do isolamento social. Talvez esse contexto facilite perceber ou torne as atividades de rotina menos variadas na medida em que o espaço no qual podemos circular é reduzido. Esse texto não é sobre essa rotina mas sobre o dia em que anoiteci.

Existe, nos extremos de um dia, um espaço de tempo em que não é dia tampouco noite. Talvez o final de tarde exemplifique o que quero dizer mas, sem observar atentamente, é fácil incorrer no erro de considerar o “final de tarde” algo à parte da noite. É provável que o momento ao qual me refiro seja, em um diagrama de venn, a intersecção entre tarde e noite e é dessa intersecção, desse momento que é várias coisas, final de tarde, inicio de noite, hiato ?? mas que nomeio à contragosto, que falo aqui.

Não estou apelando pra mágica desse momento, nem advogo que a salvação da humanidade será fruto dele. Esse é só um texto sobre o dia em que, junto com a Terra, senti que estava anoitecendo; desacelerei; reconheci brevemente que, não importa onde ou com

Foi olhando da minha janela, depois de uma chuva de verão responsa, com o sol iluminando as nuvens no céu que comecei a anoitecer. Se ainda estava escuro por conta da chuva torrencial e das nuvens ainda no céu, havia luz suficiente pra entender que ainda não era noite, que o dia ainda não havia findado e que ainda faltava coisa a ser feita: sobre a Terra, ainda faltava anoitecer; natural seria, que a natureza a acompanhasse nesse processo; estranho seria se eu, como humano no século XXI, me considerasse ligado a ele. A questão é que nesse dia eu me senti.

Mas o que, afinal, é esse anoitecer? Em partes envolve reconhecer que o dia tem momentos específicos pra determinadas atividades. Nesse dia pude observar isso. Com a chuva recém-passada os pássaros iam dando seus últimos voos, os ben-te-vis anunciavam que ainda bem-viam, mas que logo já não mais. Os mariporãs insistiam em dar um ou outro rasante entre as árvores e, conferindo o aspecto de metrópole, os pombos pombeavam. Tudo isso, no final das contas, pra assumir que já nesse momento a ordem das coisas era tal que se encaminhava para o descanso. Eu gostaria de poder descrever outros aspectos da natureza “anoitecendo” com relativa serenidade mas não é o caso.

O dia que anoiteci envolveu compreender, no interstício entre o dia e a noite, a oportunidade de serenar o coração, de me encaminhar com corpo, mente e todo o mais que me compõe para a noite e pras graças de Hipnos. Foi nesse momento, depois de reverenciar a doce compreensão recém adquirida sobre inícios de noite, que parei para refletir sobre o que tinha feito de meu dia até então, desacelerar meu corpo da rotina e ouvir, sentir e respirar. Um momento pra me desapoquentar e encarar com mais brandura as últimas atividades do dia.

A ironia? Faz cerca de semana desde então e, na rotina acelerada, só agora, escrevendo sobre, me ocorreu que em nenhum outro dia tentei repetir a experiência. Está dado o novo compromisso: tire um tempo e, assim como a Terra, anoiteça antes de seguir adiante