Esfera de Dyson

Naquela sala de cantos arredondados eram tomadas as decisões mais importantes do mundo. Talvez fosse exagero, mas tinha certeza que a hipótese que trazia naquele monte de papéis enrolados na sua mão tremula iriam mudar a vida de todos os seres vivos daquele planeta. O nervosismo fazia seu corpo se balançar em órbita, revezando o peso em cada um de seus pés.

Era a primeira vez naquele recinto e, de verdade, esperava que nunca precisasse ir para lá. Por mais que seus colegas de trabalho sonhassem com o reconhecimento de ser recebido ali pelo seu Líder Governamental, ela preferia estar no trabalho recolhendo dados de seu telescópio preferido. Já havia perdido a noção do tempo que estava lá esperando, dos ensaios para aquela conversa e até mesmo as dúzias de dias que tinham se passado desde que percebera algo estranho. No começo pensou serem apenas erros nas medições, mas agora, parada próxima ao sofá, não existia a possibilidade daquilo ser apenas um sonho mal dormido.

Em meio aos pensamentos emaranhados, um grupo atravessa abruptamente a porta dupla e pesada, fazendo a parecer tão leve quanto folhas. A frente deles, estava o Líder do Governamental. Seus pés batiam forte fazendo um som de trote, mesmo com sua visão fixada no chão logo a sua frente, parecia muito mais imponente que nas imagens transmitidas diariamente nos noticiários. Ele não olhou pra ela, sentou-se a mesa e esperou calmamento que sua equipe se posicionasse em volta dele como se fossem atores se preparando para uma apresentação. Ao todo eram seis, três pareciam seguranças com sua postura verticalmente perfeita e dois carregavam pastas e pranchetas, segurando-as como se, deixá-las cair, fosse despertar uma nova guerra.

— Pois bem, doutora. Você deve saber que não sou um Líder Governamental preocupado com espaço, estrelas e planetas. Já temos problemas demais aqui no chão pra eu me preocupar com coisas que acontecem nas luas.

— É muito mais longe, senhor. — e se arrependeu totalmente da resposta automática. Sempre teve dificuldades em não ser inconveniente, mas o nervosismo parecia retirar qualquer filtro que aprendera durante esses anos de vida acadêmica.

— É mesmo? Meu Conselheiro de Ciência e Tecnologia que insistiu que eu ouvisse o que você tem pra falar. Fale logo antes que eu me arrependa. — O olhar perfurante fez ela se sentir invisível e desejar novamente estar apenas analisando números no observatório.

— Certo... — abaixou sua cabeça para olhar suas mãos que desenrolavam tremulas os papéis já úmidos e amarrotados. Respirou fundo como enchesse de coragem para começar sua explicação ensaiada dúzias de vezes. — O senhor sabe como nós começamos a observar o espaço? Foi há 2298 anos, quando reparamos uma nova luz no céu. Uma cientista na época desenvolveu o primeiro telescópio e percebeu que a luz era uma estrela tão forte que brilhava até mesmo durante o dia. Após muitos anos descobrimos que isso foi uma supernova, uma estrela como a nossa que explodiu com uma força tão grande que o brilho dela chamou nossa atenção. E foi assim que começamos a nossa pesquisa sobre o espaço.

— Sim, mas e daí? Apareceu mais algum “superestrela” no nosso céu?

— Supernova. — nesse momento dentro dela irradiou um calor tão grande que ela tinha a certeza que poderia explodir de constrangimento e cegar a todos naquela sala, mas pensou rápido e seguiu antes que pudesse haver uma resposta — É exatamente o contrário. — dirigiu-se a mesa e espalhou finalmente os papéis a frente do Líder do Governamental, que prontamente ignorou. — Há aproximadamente cinco dúzias de anos, o nosso Chefe do Departamento de Astronomia documentou que uma estrela estava diminuindo seu brilho gradualmente. Mas como ela estava a mais de 14 mil anos-luz de distância, nunca conseguimos obter informação o suficiente para entender esse fenômeno. Isso se tornou um grande mistério na época, pois antes de morrer, estrelas explodem causando um brilho enorme e somente depois apagam.

Ela parou para retomar seu fôlego, observando se o Líder Governamental estava interessado nos papéis que jogara na mesa, mas ele ainda a observava de uma forma profunda. Ao mesmo tempo que não deixava saber se estava ou não prestando atenção ao que era dito.

— O Chefe do Departamento de Astronomia continuou a monitorar estrelas próximas e somente três dúzias anos atrás, com o lançamento do telescópio A-306, que conseguimos ter uma visão mais completa do universo. Porém, com os cortes em ciência devido à Grande Guerra, muitos estudos foram congelados e essa pesquisa ficou esquecida.

— Sim, o mundo precisou parar e estrelas são menos importantes que as bilhões de vidas perdidas na Grande Guerra.

— Sem dúvidas, Líder Governamental. Porém, uma dúzia de anos atrás fui encarregada de retomar algumas pesquisas que poderiam ser úteis. E entre elas eu encontrei os relatórios antigos do Chefe do Departamento de Astronomia. — ela gentilmente posicionou seis dedos no papel cheio de números e gráficos que estava mais no centro da mesa e empurrou lentamente para o outro lado.

O Líder Governamental abaixou os olhos, girou o papel em sua direção e balançando levemente sua cabeça percorria as linhas ali escritas. Ela esperou impaciente, mas calada, por uma deixa para continuar sua explicação.

Uma deixa que não veio.

— Olhe, por mais que uma ou duas estrelas desapareçam no céu, o que isso tem a ver? Daqui a 24 dias eu vou viajar para discutir o tratado de armas nucleares e sinceramente não vejo por que me preocupar com isso.

— Não são uma ou duas estrelas... Há 28 anos o Chefe do Departamento de Astronomia havia catalogado 8 estrelas que havia diminuído seu brilho. Hoje elas e outras 17 desapareceram dos céus. — Talvez fosse pelo tom preocupado em sua voz, pela falta de folego ou pelos números. Mas ela percebeu que pela primeira vez que o líder estava prestando atenção no que ela dizia. — E cada vez mais, estrelas próximas de nós estão se apagando.

— Você quer dizer que corremos o risco de daqui a alguns anos a nossa estrela se apague?

Ela sentiu que a tensão de seus músculos venceu e calmamente deixou seu corpo cair no sofá e descansou sua visão olhando para janela. Uma das luas brilhava parcialmente coberta por um edifício vizinho. Não sabia muito bem como explicar a hipótese que a incomodava, apesar dos ensaios prévios.

— O senhor conhece a “Placa de transição de hidrogênio”? Ela foi encontrada por arqueólogos em 3723.

— Sim, um dos meus antepassados era o Líder Governamental na época. Foi uma grande descoberta para nós. Até hoje não sabemos exatamente de onde veio, mas especula-se que alguma civilização de muito longe enviou essa placa de alumínio e ouro. A única informação que conseguimos decifrar foram a “transição hiperfina do hidrogênio” e o que parece ser a representação de seres alienígenas. — declamou como se lesse as informações de um livro escolar.

— Exato. Mas nessa placa existem algumas linhas em um padrão radial, nós sempre supomos que fosse um mapa, mas nunca conseguimos encontrar essa coordenada no espaço. — ela se levantou ainda tremula e arrastou algum de seus pés pela sala até alcançar novamente a mesa e empurrar outro papel para o Líder Governamental — Quando eu retomei a pesquisa do Chefe do Departamento de Astronomia, resolvi alinhar o telescópio A-306 para região da primeira estrela, afim de tentar identificar a causa inicial ou verificar se havia outras estrelas próximas se apagando.

Por um mero momento ela esqueceu que estava ali, respirou fundo duas vezes repassando as informações em sua mente. Será que ela estava louca? Será que era um erro de calibragem? Será que ela seria ridicularizada por todos os séculos restantes de sua vida?

— Encontrei esses pulsares que se encaixa perfeitamente no descrito na placa. E ao pontar o telescópio para o centro desse padrão pude encontrar uma pequena estrela que possui 9 planetas que orbitam em sua volta.

— Devo confessar, doutora, que quando entrei nessa sala não imaginava que a sua descoberta fosse tão importante. Mas ainda não entendi a urgência e os motivos para que o Conselheiro de Ciência e Tecnologia convocasse essa reunião.

— O senhor conhece o conceito da “Estrela de Dyson”? — ela esperou por uma resposta, mas entendeu logo que um Líder Governamental não pode simplesmente admitir ignorância e prosseguiu — É uma ideia criada por um filósofo onde diz que o pico energético de uma civilização seria construir uma estrutura que cobrisse totalmente uma estrela, consumindo sua radiação emitida e transformando-a em energia.

— E isso é possível?

— Atualmente, não. Não para nós. Mas em teoria, se uma civilização fosse tecnologicamente avançada o suficiente, iria precisar de muita energia para colonizar outras estrelas e, quem sabe, até mesmo toda nossa galáxia. É provável que após a construção da sua primeira “Esfera de Dyson”, seu crescimento seria exponencial e predaria outras estrelas e sistemas estrelares.

Um silêncio dominou novamente a sala, pela primeira vez o Líder Governamental jogou seu corpo para trás, fazendo a cadeira reclinar e desviando o olhar para o teto. Ela, impaciente, rompeu o silêncio que incomodava a todos na sala.

— Não sei se o senhor compreendeu o que estou propondo, mas...

— Sim, eu entendi. Você esta supondo que a civilização que enviou “Placa de transição de hidrogênio” é muito mais avançada que a nossa e que esta consumindo outras estrelas, colonizando nossa galáxia.

— Sim. — pela última vez respirou fundo e soltou os finalmente os ombros — E estão vindo na nossa direção.

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