Santíssima Trindade

Capítulo 1 – Escatologia

Parou em frente a porta, olhou-a de baixo pra cima tentando demorar o máximo possível esperando o milagre da coragem chegar. Fez uma reverência para desviar da ripa pregada no batente. Empurrou aquela pequena porta arredondada e atravessou com a pose de quem ia revelar o vilão do filme… Mas a Rafa estava dormindo. Voltou a postura normal. Ombros relaxados, talvez cansados e um olhar de quem procura comida no chão.

Cruzou o trailer desviando dos entulhos e sentou-se ao lado da cama, onde ela dormia com as pernas encolhidas pro lado da parede. Apenas alguns dias antes Rafa explicou que era mais seguro assim, poderia engasgar durante o sono. Hoje não possui mais forças para falar. Pedro pousou a mão em suas costas, pra ver se ainda estava respirando. Os cabelos não aparentavam mais o mesmo bagunçado bonito de antes e os ossos já marcavam suas articulações como se fosse uma boneca de madeira.

Por estar ao seu lado o coração já batia mais calmo e os lábios tentavam uma pequena emoção, não o suficiente para poder ser um sorriso. Mas ficar ao lado de seu amigos sempre lhe causou esse bem. Faziam dez pares de anos que se conheciam. A Rafa contava para qualquer estranho no bar que conheceu Pedro e Marcelo enquanto fugia da polícia, por estar fumando maconha na praça, e os dois ajudaram-a a se esconder. Mas ele lembrava que era só por causa do skate e era o diretor da escola, mas a história era mais legal assim. Sempre teve um olhar de aluada e sorria pra tudo. O Marcelo era o mais popular da tríade, com diversas namoradas, colecionava piadas e histórias engraçadas. Os dois eram tudo de importante que ele já teve por perto durante boa parte da sua história.

Nunca poderia pensar que a amizade fosse durar tanto, passaram pelo colégio juntos e mesmo as faculdades sendo diferentes, compartilharam os bares. Não havia nada que eles não tivessem vivido juntos. Depressões, saudades, divórcios, doenças… Quando a Rafa fez quimioterapia, ele que assou o bolo espacial pra ela. Quando o Marcelo foi preso, eles que iam visitá-lo toda semana. Quando precisou de ajuda para crescer e ter coragem de ser uma alguém, foram eles.

Se seu calendário mental estivesse correto, o que duvidava um pouco, fazia três meses que não viam o Marcelo. Foi mais ou menos nesses dias que começou a doença. Ela precisou ficar de cama, não dava para sair para procurá-lo, a prioridade era buscar por remédios que aliviassem as dores. O esconderijo ainda era o mesmo, um pequeno trailer abandonado ao lado do parque que a vegetação já havia escondido. Se estivesse bem, poderia voltar. Se não, era melhor nem saber.

Naquele momento, sentado no chão ao lado da cama, abraçou as pernas e afundou o rosto nos joelhos. A respiração, incerta como a vida presente, competia com a força que fazia para fechar os olhos e não deixar as lágrimas fugirem. Ouviu a chuva começar a se atirar contra teto do trailer. Segurou na cama e fez força para se levantar, engoliu a seco as mágoas pelo mau do mundo e atravessou o trailer em direção à porta. Vestiu sua capa capa de chuva, uma velha lona azul, e hesitou procurando forças para adentrar o mundo. Por menos de um segundo sorriu como uma autoflagelação: ainda não fazia nem dois anos que o mundo havia acabado.

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