o sol na pele pra entender
esta árvore: a avó de alguém
era jardineira ou propriedade
quando a muda vingou
contrariando a todos
e absorveu um bloco inteiro
da calçada
o sol na pele, entender
que cabeça é picote
revista esburacada
sonda lunar, jacaré
gagarin olhando a lagoa
lotada de guarda-sóis
e fatiadores de salame
o sol na pele
pra entender os gestos
da história, os paraquedas
e as bolhas de sabão da história
entender que o café perde calor
rapidamente por irradiação
saber os tempos
poupar os beiços
aqui da varanda o céu é preto vermelho azul e pontilhado toda noite o céu é completamente iluminado são os olhos que não capturam a radiação de fundo cósmica
e é só dançar que a vizinhança espirra
tome cuidado com as abelhas invasoras elas bebem o café depois o açúcar depois a umidade relativa e quando você se dá conta a colônia inteira está atrás de um sal de frutas
mas ó se o achado for caixa de chá cheiroso quem tem charme só me chame que eu chamusco viu?
quando ouvi o bem-te-vi que só canta -vi parei de cantar com o juízo
todos os gatos são pardos à noite menos os gatos brancos branquíssimos que são brancos não importa a hora do dia no estado do espírito santo
um periquito no telhado é sinal de sorte muita coisa por aqui é sinal de sorte somos sortidos
jaguarzinho, meu jaguar
gato do mato, aonde foi?
se o salto
do galho mais bambo
da araucária mais bamba
te enche de música
e pinhão, eu temo
que o vento vire de lado
que as mutucas te peguem no ar
que a presa se vá e daí
sejam só seu focinho e o chão
tocando tambores
jaguarzinho, meu jaguar
gato do mato, aonde foi?
aqui no capim da tarde
à sombra dos nossos castelos
me escondo das britadeiras
toda escavação me dói
mas te alarga a pupila, eu sei
existe uma trilha
que só se abre ao olfato
jarguarzinho, meu jaguar
gato do mato, aonde foi?
toda noite te espero passar
na frente da nesga de lua
picão nas orelhas, carrapicho
nos bigodes, mordida de formiga
de manhã você tem oftalmo
jaguarzinho,
e eu, gastrologista
se mudo, por exemplo
os livros para a sala
tenho que trazer a poltrona
para o quarto, um processo
que bota duas caixas de papéis no lixo
e abre espaço para uma mesa
em doze prestações
mas de manhã, meio sono
sentarei nos livros e alguém
à noite lerá a costura da poltrona
marcaremos oculista
beberei café em baldes
e depois de uma semana
num ataque de gastrite
decidirei que era melhor mesmo
os livros no quarto
e a poltrona na sala
mas os papéis terão voltado
pra se vingar
e a mesa nova vai ficar sobrando -
uma quina selvagem
à espreita dos joelhos exaustos
encruzilhada
acontece
todo dia
três ou quatro caminhos
para ir ou pra voltar
e não saber a esquerda onde
toda dúvida é um sinal
da possibilidade
um cesto
de folhas de grama
cabelos em trança
goiabas em transe
cheias de túneis
evito goiaba por medo
de arrancar o coró escavante
dos seus trajetos vegetais
aqui no mundo os cruzamentos
traduzem sem esforço
todas as línguas:
nuvem
geleira
abraços
fenômenos naturais
interrompidos apenas
por aquilo que não fala -
quanto desejo domesticado
pelo espírito da lâmina
quanta palavra pulverizada
pra fabricar concreto, e do concreto
muros, e dos muros
abismos, máquinas de fatiação:
goiabas selecionadas
e abelhas extraviadas
esquecem suas línguas
em silêncio
ânimo e animal
têm a mesma origem
mas há animais imóveis
(como as esponjas)
e há também as baleias
que usam o verbo mover
em conotação cetácea
– conjuga-se arrastado
e profundo
são bichos compostos: peixinhos
comensais buracos nas barreiras
de fitoplâncton crustáceos sedentários
limpadores de carapaça
de fato brotam das baleias
esses fenômenos, como prédios
ou como mato – à revelia
não havia animais na terra
no tempo das derivas gramaticais
quando a américa era ainda
um trecho do mar total
mas as coisas mudaram muito
e hoje baleias flutuam
em plena seca, lentamente
fugindo das cintas de asfalto
o rabo solto nos pedágios, as cracas
agarradas ao queixo enorme
onde bate o vento morno do dia
com seus insetos nutritivos
e bem-te-vis em simbiose
engoliam os abacates
e carregavam no trato
digestivo as enormes sementes
para depositá-las no campo
mergulhadas em caca
– os abacates, então,
brotavam no tempo
pergunte a um abacatinho
de mercado, desses selecionados
olá, querido, saberia me dizer
pra que serve o caroção
e ouvirá do progresso,
do mistério, do amor:
nenhuma palavra
sobre cocôs ancestrais