se mudo, por exemplo
os livros para a sala
tenho que trazer a poltrona
para o quarto, um processo
que bota duas caixas de papéis no lixo
e abre espaço para uma mesa
em doze prestações
mas de manhã, meio sono
sentarei nos livros e alguém
à noite lerá a costura da poltrona
marcaremos oftalmo
beberei café em baldes
e depois de uma semana
num ataque de gastrite
decidirei que era melhor mesmo
os livros no quarto
e a poltrona na sala
mas os papéis terão voltado
pra se vingar
e a mesa nova vai ficar sobrando -
uma quina selvagem
à espreita dos joelhos exaustos
encruzilhada
acontece
todo dia
três ou quatro caminhos
para ir ou pra voltar
e não saber a esquerda onde
toda dúvida é um sinal
da possibilidade
um cesto
de folhas de grama
cabelos em trança
goiabas em transe
cheias de túneis
evito goiaba por medo
de arrancar o coró escavante
dos seus trajetos vegetais
aqui no mundo os cruzamentos
traduzem sem esforço
todas as línguas:
nuvem
geleira
abraços
fenômenos naturais
interrompidos apenas
por aquilo que não fala -
quanto desejo domesticado
pelo espírito da lâmina
quanta palavra pulverizada
pra fabricar concreto, e do concreto
muros, e dos muros
abismos, máquinas de fatiação:
goiabas selecionadas
e abelhas extraviadas
esquecem suas línguas
em silêncio
ânimo e animal
têm a mesma origem
mas há animais imóveis
(como as esponjas)
e há também as baleias
que usam o verbo mover
em conotação cetácea
– conjuga-se arrastado
e profundo
são bichos compostos: peixinhos
comensais buracos nas barreiras
de fitoplâncton crustáceos sedentários
limpadores de carapaça
de fato brotam das baleias
esses fenômenos, como prédios
ou como mato – à revelia
não havia animais na terra
no tempo das derivas gramaticais
quando a américa era ainda
um trecho do mar total
mas as coisas mudaram muito
e hoje baleias flutuam
em plena seca, lentamente
fugindo das cintas de asfalto
o rabo solto nos pedágios, as cracas
agarradas ao queixo enorme
onde bate o vento morno do dia
com seus insetos nutritivos
e bem-te-vis em simbiose
engoliam os abacates
e carregavam no trato
digestivo as enormes sementes
para depositá-las no campo
mergulhadas em caca
– os abacates, então,
brotavam no tempo
pergunte a um abacatinho
de mercado, desses selecionados
olá, querido, saberia me dizer
pra que serve o caroção
e ouvirá do progresso,
do mistério, do amor:
nenhuma palavra
sobre cocôs ancestrais
do que é feito um urubu?
um lago de água doce
empoçada pelos anos:
o tempo que leva o tombo do boi
do que é feito um urubu?
vento pena ritmo flutuação
o vulto dos vivos
no rabo do olho
e todas as delícias da terra
do que é feito um urubu?
e se eu trocasse as suas penas
uma a uma
ao longo de doze luas
seria outro urubu
no retorno do sol?
e se eu trocasse as suas rotas
as suas dívidas
e rearranjasse as angústias
onde você passaria
suas férias de verão?
do que é feito um urubu?
come paca, não vira paca
come peba, não vira peba
come pomba, ah não, urubu!
não coma pomba não
um urubu não é feito
é música castelo
de areia distância
de hamming charada
e o chute perfeito
mas onde, por que, de que jeito
do que é feito um urubu?