Santissima Trindade

Capítulo 1 – Escatologia Capitulo 2 – Kamikakushi

Limpou suas lágrimas com as mãos e se sentiu um idiota. Já estavam sujas da chuva gosmenta cuspida pelo céu. Elas traziam um gosto de lixo queimado e faziam a pele sentir-se olhos cortando cebola. Se apoiou à ripa pregada na porta e desfaleceu e caiu no degrau do trailer. Empurrou a porta com seu pé esquerdo e arrastou-se lentamente em direção à cama, cavando espaço entre os entulhos do corredor. Tentando se acomodar no canto do quarto, encostou a cabeça no colchão e abraçou as pernas daquele jeito que se sentia seguro.

Ficou reparando no bagunçado do cabelo e nas saboneteiras que já não tinham como serem mais profundas. Observou as pálpebras abrindo vagarosamente como as de um cão velho cheio de ternura, mas pronto para o fim. Ela levantou o indicador como se tentasse ter forças para alcançar o rosto dele, descansando perto do dela, mas desistiu. Pedro esticou seu braço e alcançou sua mão.

Quis lhe contar que tinha encontrado-o, mas não teve coragem. Estava procurando comida no mercado e, entre um corredor e outro, o viu contra a pouca luz que vinha da rua. Marcelo se aproximou, parando a uma prateleira de distância. “Você precisa ir embora logo, têm pessoas observando e não querem te ver por aqui”. Pedro percebeu um mal agouro subindo pelas costas com o olhar agressivo do amigo, que já havia visto, mas nunca recebido. Recuou meio passo com a cautela que aprendera nos anos juntos.

“A Rafa tá doente de novo”, contou das dores e implorou por um sinal de solidariedade que não veio. Os cabelos cacheados passando dos ombros já não combinavam com o semblante carrancudo. Era evidente que ele havia entrado para a milícia, só não conseguia entender o motivo. Tentou novamente se aproximar e foi ameaçado com a pistola, “Não se aproxime! Os Revolucionários não querem civis aqui. Qualquer desconhecido será tratado como inimigo! Vá embora!”

Insistiu e ouviu um estrondo. Seu corpo cambaleou para trás, olhou para baixo e notou um novo buraco na surrada capa. Desesperado, correu tentando se esconder atrás das prateleiras caídas e fugiu pelas portas de vidros quebradas da entrada. Correu como se sua vida dependesse disso.

Não dependia.

“Mesmo depois do fim do mundo, nunca achei que ele fosse atirar em mim”, olhando para a ponta do nariz da Rafa, tateou procurando inutilmente sinais de vida em seu pescoço. Encostou a cabeça na parede, esticou suas pernas, soltou sua costela que ainda sangrava e sorriu. Agora eles finalmente podiam descansar. Respirou fundo uma última vez. Foi acordado pelo despertador do seu celular.

Levantou assustado, tropeçou para fora da cama e caiu ao lado da janela que balançava as cortinas e deixava o sol brincar com a luz que emanava da agradável manhã. Procurou o celular que havia voado com a queda. Olhou para a tela e havia trinta e duas ligações perdidas e outras dezenas de mensagens não lidas. As duas últimas eram da Rafa:

CARALHO! ACORDA PORRA! Eu tenho certeza que não foi sonho! Vou passar no Marcelo e vou ai!

Tipo

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