Santissima Trindade
Capítulo 1 – Escatologia Capitulo 2 – Kamikakushi Capítulo 3 – Trimúrti Capítulo 4 – O fim
“Tive que sobreviver. Vocês dois tiveram vida de playboy, eu cresci na zona industrial. Os Revolucionários foram minha salvação, consegui sobreviver muitos anos ainda. E lá eu tive um propósito para minha vida. Quando você apareceu naquele prédio, eu precisei escolher salvar o que era mais importante pra mim. Não foi fácil e me garantiu um futuro. E a gente nem era tão amigo assim, só nos conhecemos há muito tempo.”
Nenhum dos dois esboçou reação alguma para o que havia sido dito. A doença, a chuva, os dois anos no fim do mundo. Nada poderia ser mais doloroso que aquelas palavras. Rafa apertava sua mandíbula como se segurasse a raiva que sentia engasgada. Levantou-se apoiando uma das mãos no chão e deu dois passos duros e sonoros, em direção a Marcelo que estava em pé logo depois do batente porta da cozinha. Pedro, encostado na janela com os braços cruzados, acompanhou a amiga com os olhos. Compartilhava da sua dor e raiva.
Ela parou a poucos centímetros dele, sem completar o passo. Dobrou levemente seu joelho esquerdo, apoiando seu peso na perna que havia ficado para trás. Girou o torço para a direita, mantendo seu olhar fixo no do amigo, e fechou seu punho. Com os dedos do seu pé de apoio, forçou-se contra o chão de carpete, ajudando seu corpo a rotacionar de volta como um estilingue. O punho viajou como uma flecha acertando o rosto, que nem teve o reflexo de piscar, fazendo-o cair ao mesmo tempo que o braço terminava a trajetória de ira.
“Cala a sua boca! Não precisa contar tudo pra gente, o mundo acabou e fizemos algumas merdas, tudo bem. Mas você não tem o direito de falar que nunca fomos amigos. Vocês são tudo que eu tenho hoje e vai ser tudo que eu vou ter, daqui a dois dias quando acabar o mundo.”
Ainda caído no chão da cozinha, sentou-se puxando as pernas para si e encarou a amiga com o olho que ainda conseguia abrir. Pensou em tantas coisas para falar, mas somente se levantou apoiando no armário da cozinha. Pegou um pano de prato pra estancar o sangue do supercílio aberto e foi em direção à saída.
“A gente te espera aqui, amanhã a noite”. Rafa olhou pela última vez o amigo que, parado na porta, esboçou um sorriso curto e foi embora sem responder. O céu escureceu e não tiveram vontade de conversar. Logo ela deitou-se no sofá e fingiu dormir, Pedro foi fazer o mesmo em sua cama. Talvez o Marcelo só tivesse feito algumas besteiras. Mas, no fundo, tinha esperança que ele ainda voltasse e explicasse tudo.
No dia do fim, o mundo se comportou de forma estranhamente normal. As pessoas foram trabalhar como se bombas não fossem cair de madrugada. O dia passou com a ansiedade e a incerteza do fim. Assistiram a programas de TV que tentavam explicar o acontecido e dava palco para malucos que teorizavam sobre o delírio. No final do dia protegeram as janelas com móveis e deixaram a porta da cozinha destrancada, caso o amigo viesse.
Mas ele não veio. Assim como as bombas.
Ninguém de fato entendeu o que aconteceu ou o que deveria ter acontecido. Os ataques nucleares não aconteceram durante a madrugada e pareceu óbvia a relação com assassinato de seis líderes mundiais naquela noite. O ataque foi coordenado por um grupo desconhecido e até hoje não divulgaram seus nomes ou seus motivos. Pedro e Rafa até hoje são amigos e frequentam o bar favorito do Marcelo. Aquele que escolheu salvar o que era mais importante para si.
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